31 julho 2012

Urzes


Eu sou desassossego
Como o barulho das lâmpadas
Antigas
Velhas
Gastas.

Eu sou óbice
Como almofada retorcida
Afeadas
Inconformismo
Deitado.

Eu sou a letra
Manchada em impressos
Torta
Indecorosa
Estridulosa.

Eu sou
Apenas eu
Sendo a naturalidade
Emaranhada
Em urze.

Eu sou as pontas
As cinco
Estiradas ao todo
Frementes
Inertes.

Os meus relógios são os quadros.

Ana

30 julho 2012

curta historieta que fala em coisas sem culpa nenhuma


Desleixo.

Paredes caiadas com as estantes no alinho mais obsessivo que pode haver. A ordem alfabética manifesta e caricata, só por de nada servir. 

– Assim é mais fácil procurar.
– Quem procura sempre alcança?
– Penso que sim, sigo o propósito da busca, contra-relógio. Sinto que lhe ganho por ter definido a ordem pelo cunho do alfabeto.

As frases curtas também marcavam a sinfonia da falta de delicadeza do alinhamento primoroso. Já nada era proferido que fosse novo. Tudo usado permite a arrumação, que por seu turno (sentado a ver quem passa), faz enfiar os dedos pelo cabelo, percebendo o seu desalinho, buscando escovas, pensando em cortá-lo curto de novo, deixando ideias de lado, adiando sonhos perecíveis de tanto serem arredados.



– O tempo não se deixa vencer por listas que fazes, por ensaios que teimas a opor-lhe.
– Mas…O que sabes sobre isso? Sobre o meu alinhamento?
– Planos desse género só me trazem à cabeça livros de cupões de desconto. Não lhes consigo dar valor.
– Não percebo o que isso tem a ver com…
– Obrigam, de facto, a essa organização de filtragem obrigatória, que passa por te lembrares das datas. Cansa. Desgasta. 

Mantém-se hirsuta, impecavelmente séria. Olham as duas a parede caiada, os livros alinhados por letras. Desejam ser pequenas outra vez, sem se perderem uma da outra.

– Fizeste-me chorar. Eu prometo que vou largar esta mania. Vou desalinhar os livros e deixar de olhar o relógio como um moinho de vento. 

Põe-lhe a mão na barriga. Olha-a de esguelha.

Foi-se embora de vez. Sabe ter sido implacável. Sente não ter tido outra escolha. Garante-se não olhar para trás.

Absolvição.

Ana

24 julho 2012

lista das letras maiúsculas


O Pessoa atropelou-se em pedras e castelos que erigiu, mais ou menos, certo da sua caneta. Em riste e de pé. É um homem intrigante que a esta hora toma café com o Saramago e discutem, calorosamente, a extensão da estupidez que decorre do Novo Acordo Ortográfico. Já Camões e as suas extensas manápulas, passadas por isso umas quantas vezes, deita-se de olho posto no azul do céu e carpe o terrorífico e jogral facto de nunca ter tido acesso à Internet. A Florbela passeia-se de bule na mão, escaldando chás trazidos das índias longínquas e em tons de rosa, suspirando amores enterrados por debaixo de uma sombra, lá no monte seco, onde tantas vezes usou e gozou do acto de ser herege consigo mesma. O Régio joga um xadrez inquinado à lupa com o Torga, contando bichos e encantos que se despedem dos sinuosos traços dos rochedos de granito. Um País tão curto, tão cheio de tudo. 



Escolho o olhar grave com que nos permitimos jamais encontrar estranhos em esquinas. Nós temos as Quinas. Cada canto é nosso. Corremos o Mundo. Assim, num tão cruel Fado de ter de partir à descoberta, conquistamos a Saudade. Nossa, só nossa. A languidez desenhada em Português. O daqui. Trucidado hoje. Mantenho a recusa, a negação, pois todos os senhores do Jardim, mais aqueles que não se arribaram, pensados pelos que ainda não saíram, olham, expectantes, o mais cálido Nevoeiro.

Hoje fico com eles. Uns no sofá, outros na varanda. Talvez leve para a cama o Paixão, que ainda ontem o vi contorcer-se com a mesma angústia do que a minha. Não lavo nenhum, não há água que aguente tanto Sal, nem sabão que disfarce o Odor. Não tenho presunção nenhuma a somar aquela já existente – olhos grandes, muitas histórias, mais abraços do que braços. Todavia, há a pergunta que não respondo com os lábios, nem tampouco com os olhos, pedaços meus, feitios globulares inconclusos para detença insubstituível. Já to disse, toda eu, mesmo antes do mo afirmares ao ouvido. O esquerdo.


Ana Luísa Monteiro

13 julho 2012

colectânea moída

a medida do vento é um ar que se lhe deu. são sopros principais que fazem ventanias em lugares que têm as janelas fechadas. brechas só as há, plenas de serem observadas com minúcia, nas paredes moles. é que até em palavras simples se tacteia alvoroço. nem bom. nem mau. são os factos.

o moleiro abancou-se. sentado num tronco, perfeito cilindro, pois não vive só da pedra, mas também do rolo. ruralidade desconhecida, que assalto perfeitamente de olhos vendados. errada, a rapariga errada. aquela do livro de capa branca e roxa. aquela que se aventurava sem saber. aquela que errou por ânsia. de ser!

mais analogias coleccionadas e isto seria o País das Maravilhas. a merda é não me chamar Alice.


08 julho 2012

triste vista numerada com uns dois palmos e meio de chá das 5

continuam a chegar a casa à mesma hora. mas agora já correm a cortina. só se pode adivinhar as conversas com um véu roto, com buracos. pano sujo. nada de novo, porém. é que depois de um sério ralhete e sob gravosa ameaça de debandada, há pessoas que são espertas o bastante para se ajoelharem.

a vista continua triste.



07 julho 2012

relógio das rugas - onde ias tu com tanta pressa?

A cidade distrai.

Oferece, de mão beijada, conluios espessos e espalhados. Faz o sentido das coisas ser pacote de pastilhas elásticas. Sabor a menta.

Andar nas ruas tem uma música própria, esconjura a passada curta-rápida, levada pelo trabalhar dos carros, pressas levantadas, pensamentos focalizados. Esses últimos são magnificentes ocupas, sem moinas que os ponham fora, recebem agradecimentos até do Excelentíssimo Bispo e nunca foram à Igreja. Nada precisam de Deus ou deuses e ninfas. Taparam a boca ao Buda. São apenas instrumentações de uma religiosidade atarantada. A fé em nada e prego a fundo. Nem tampouco se trata do divino. A fé expurgada de tal forma que se apagaram os contornos dela própria. Crê-se apenas numa imortalidade etiquetada num qualquer valor monetário. Nem o toma-lá da-cá detém os sonhos extremistas de um ideal seco.

Tentam matar a nossa língua.

Nas correrias amassa-se o tempo do relógio das rugas na pele. Nunca se envelhece, até algum dotado energúmeno se atenha na certeza de que alguém já não é lesto o suficiente. Joga-se o pré-primário, ceifando em laivos, gravemente, um céu que viu nascer Pessoa. Ninguém liga, ignorando que ninguém lhe ligará quando o vislumbre simples da humanidade desmaiar de repente nos seus braços.

A cidade não se compõe dos edifícios, esticados nas bermas das ruas alcatroadas. Isso é palco. A distracção assola pelos olhos de quem nunca vê.

Morre apenas quem não pode ser maior.


Ana Luísa Monteiro